Quem viveu os anos 90 certamente se lembra do Tamagotchi, aquele bichinho virtual japonês que precisava ser alimentado, limpo e cuidado para não “morrer”. Foi uma febre mundial. Passadas algumas décadas, parece que estamos revivendo uma versão atualizada desse fenômeno, só que agora com um grau de realismo e complexidade muito maior.
Depois dos pais de pets e dos pais de planta, surge um novo perfil: os pais de bonecas reborn — adultos que investem tempo, dinheiro e afeto em bonecas hiper-realistas, tratadas como se fossem bebês de verdade. Elas recebem nomes, ganham roupas personalizadas, são levadas em carrinhos e até em viagens. Há influencers que mostram sua rotina com as bonecas, hotéis especializados em “hospedar” reborns, salões de beleza para “cuidados maternos”, aulas de “educação reborn” e um vasto mercado de acessórios, bijuterias, certidões fictícias e serviços personalizados. A indústria agradece.
A pergunta inevitável é: por que um adulto, com boletos para pagar e responsabilidades reais, compraria uma boneca para cuidar como se fosse um filho?
Talvez porque ter um filho de verdade custa caro, exige renúncia e entrega, e, em muitos casos, limita a liberdade individual. Uma criança real chora, adoece, cresce, desobedece, exige atenção constante. Já uma boneca reborn representa um filho sob controle: silencioso, estático, idealizado. Não exige nada, apenas projeta o que o adulto deseja viver.
Em outras palavras, a boneca se torna o símbolo perfeito de um tempo narcisista, onde tudo pode ser moldado para o conforto emocional pessoal — inclusive a experiência da maternidade ou paternidade. Como disse o sábio: “não há nada novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1:9). A forma muda, mas a busca por controle, conforto e sentido permanece.
Obviamente, há contextos legítimos em que o uso da boneca reborn tem um papel terapêutico — como no tratamento de idosos com demência, ou em processos de luto. Mas quando o fenômeno se torna cultural e comercializado em larga escala, é necessário fazer uma leitura mais profunda.
O que talvez não estamos percebendo é o nível de ostracismo social, emocional e espiritual que estamos vivendo. Substituímos relacionamentos reais por relações simbólicas e controláveis. Fugimos das dores da vida real para brincar de realismo afetivo com bonecos. Buscamos consolo em objetos ao invés de buscarmos cura em vínculos verdadeiros.
No fundo, o fenômeno das bonecas reborn não é sobre bonecas. É sobre nós. Sobre o que estamos nos tornando. Sobre a dificuldade de amar de verdade, sem controle, sem roteiro, sem perfeição. E talvez também, sobre o quanto a solidão está se disfarçando de cuidado.
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