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O GRANDE GENERAL PLÁCIDO


Eustáquio, ou Plácido (nome pelo qual era mais conhecido), foi um dos grandes generais do exército romano, no início do segundo século. Seu nome e sua influencia eram notórios entre os soldados, tanto por causa de sua virtudes quanto por sua capacidade e triunfes militares. Todos o admiravam por sua brandura e seu amor à justiça e à caridade. Ele era um pai para os soldados, e tratava-os com mansidão e justiça, virtudes desconhecidas da bárbara soldadesca, mas preciadas no momento em que a sua influência benigna era sentida. Ele era generoso e caritativo com os desafortunados, e apesar de pagão, notavelmente virtuoso. A verdadeira grandeza é incompatível à propensão brutal do homem. As virtudes e a posição exaltada de Plácido atraíram os homens mais conspícuos da época, como se fora uma estrela solitária brilhando através da massa escura de nuvens, numa noite tempestuosa. Não admira que ele fosse assinalado pela Providência como objeto de graça especial, e instrumento de grandes milagres, pois que o Todo-Poderoso ama a virtude e a ordem, ainda que praticadas por um gentio, e nunca falha em recompensá-lo no devido tempo.

Talvez tenha sido a caridade de Plácido, algum ato silencioso de benevolência em sua vida, que tenha movido o coração de Deus a fazer dele um vaso escolhido. Certo dia, como era de costume, Plácido saiu a caçar. Foi com alguns oficiais da cavalaria, de que era comandante, ao cume do monte Sabino, onde toparam com um bando de belos antílopes. Dentre eles, um de maior porte e beleza atraiu a atenção de Plácido, que se pôs a persegui-lo com todo o ardor da caçada. Com o entusiasmo somente conhecido dos caçadores, ele logo separou-se dos companheiros, e transpôs colinas e corredeiras, e esteve à beira dos mais
perigosos precipícios. Plácido não conhecia perigos; não estava acostumado a
derrotas. Prosseguiu, por montanhas e vales, até alcançar a sua presa numa
ravina deserta, não muito longe do local onde hoje se acha a pitoresca vila de
Guadanolo. Estes foram o local e o momento destinados por Deus para iluminar
com a luz de Cristo a mente do grande general. 0 antílope estava na ponta de
uma rocha, acima dele. Enquanto olhava para o animal. Plácido ouviu uma voz:

- Plácido, sou Jesus, a quem serves sem conhecer. A tua caridade e os teus
atos de benevolência chegaram até mim. Um homem justo, amado por suas
obras, não deve servir ao Diabo e falsos deuses, que não podem dar vida nem
recompensa.

Aturdido e atemorizado, Plácido desmontou. Ele não podia desviar os olhos
da luz brilhante à frente - mais brilhante que o sol, Finalmente, ganhando
coragem, bradou num tom exaltado e trêmulo:

- "Que voz é esta? Quem está falando? Revela-te para que eu possa
conhecer-te. Novamente a voz celeste caiu-lhe aos ouvidos:

- Sou Jesus Cristo, que do nada criou os céus e a terra, que a tudo deu
forma, e fez a luz surgir da escuridão. Sou aquele que criou a lua e as estrelas, e
fez o dia e a noite; que formou o homem do pó da terra, e para a sua redenção,
vim em corpo humano, fui crucificado, e ressuscitei dentre os mortos ao terceiro
dia. Vai até a cidade. Plácido, procura o pastor dos Cristãos, e sejam batizado.
Um raio - o último raio da luz brilhante que lhe deslumbrara os olhos - penetrou-lhe o coração, e ele entendeu tudo.
Plácido permaneceu quatro horas de joelhos; sua primeira oração a Deus, oração fervorosa e plena de gratidão.
Quando se levantou de sua profunda adoração, percebeu que estava tudo escuro
e em silêncio. O sol desaparecera atrás dos montes, e o seu cão e o seu cavalo
fiéis, porém cansados, dormiam atrás de si. Plácido levantou-se, à semelhança de
Paulo na estrada de Damasco, com a coragem de um leão para proclamar a
verdade de Cristo e a misericórdia de Deus. Despertou o cavalo, e retomou
lentamente à cidade, através das passagens desoladas dos montes.




Entrementes, os alarmas pela segurança de Plácido já haviam chegado até
sua casa, na cidade. Ele fora abençoado com uma nobre e amável esposa; sua
união vinha-se fortalecendo por longos anos de paz. A semelhança de suas almas
virtuosas, seu lar era um cenário de felicidade domestica raramente encontrado
nos círculos pagãos. A ausência inusitada do general causara à esposa imensa
ansiedade; durante toda a noite, ela esperara ouvir-lhe os passos na soleira da
porta, mas a alvorada pardacenta já rompia no horizonte, e ainda nem sinal de
Plácido.

Despertando de um repouso momentâneo e de um sonho ilusório, ela encontrou a escrava esperando que retornasse à consciência para entregar-lhe uma mensagem.

— Nobre senhora, Rufo, que acompanhou o general à caçada, retornou e
pede uma audiência..

— Rápido, rápido, Sílvia, traze-o à minha presença.
Ela saltou do leito, encontrou o soldado veterano à porta, e tremendo de expectação, falou-lhe:

— Dizei-me, Rufo, tu sabes tudo sobre o general. Tu és um verdadeiro soldado, e mantém-te ao seu lado nas horas mais escuras. Como pudeste separar-te dele? Fala, eu temo o teu silêncio.

O veterano inclinou-se sobre a alabarda, uma arma constituída de uma longa haste de madeira rematada em ferro largo e pontiagudo, atravessado por outro em forma de meia-lua. Após pequena pausa, falou em voz profunda e solene:

— Nobre senhora, não desejo atiçar-te o receio das mais escuras calamidades, mas temo pela segurança do general.

— Eu te conjuro. Rufo, conta-me tudo! — exigiu ela freneticamente. — 0 seu cavalo de confiança caiu e o lançou num precipício? Os lobos das ravinas alimentaram-se de seu corpo lacerado?

— Nenhuma dessas calamidades, nobre senhora, sucederam ao bravo comandante — interrompeu Rufo. — Achamos que ele perdeu o caminho nas montanhas, e deverá estar aqui antes do meio dia. Eu estava ao seu lado, quando um grande antílope saiu do matagal; os cães o perseguiram, e os nossos cavalos voaram pela encosta áspera da montanha. 0 antílope era o maior que já vimos nestas paragens, e o mais veloz também. Nossas cavalgaduras inferiores logo ficaram para trás, e vimos o cimo brilhante de nosso comandante correndo como unia bola de fogo através da floresta. Logo o perdemos de vista, perto das ravinas do Marino.

Paramos à sombra de uma figueira, esperando a cada momento ver o nosso galante comandante retornar com a presa de sua bela caçada. As horas passaram-se vagarosamente; esperávamos ansiosos ouvir o som de sua trompa.

Nenhum cachorro voltou com a boca suja de sangue para assegurar-nos da vitória; cada momento de ansiedade fazia pulsar mais forte o martelo da vida. Procuramos nos lados da montanha, e chamamos em alta voz o nome de nosso general; não houve resposta, a não ser os ecos que quebravam a quietude do bosque das oliveiras.

Tremendo por sua segurança, corri de volta ao quartel-general, e pedi um

destacamento de cavalos para percorrer a montanha. Nota, nobre dama, como foi
que me separei do general. As correntes de vida do sangue do meu coração não
me são mais preciosas que a segurança do meu senhor. Rufo não deve servir sob
outro comandante além de Plácido.




Enquanto Rufo ainda falava, ouviu-se do lado de fora um alvoroço, e alguns escravos empolgados entraram correndo, anunciando a chegada do general.
Esgotado, e coberto de pó, ele apeou da montaria. Em silêncio, abraçou a esposa,
e fazendo um sinal para que todos deixassem o aposento, voltou-se para ela:

— Estela, tenho uma história muito estranha para contar-te. Tu sabes que os terrores da guerra e o esfacelar-se dos impérios foram sempre a minha ambição c a minha alegria. Antigamente, eu nada temia; não conhecia Deus além de minha espada. Mas desde a última vez que me sentei à sombra destas torres ancestrais, e de teu sorriso amoroso, uma mudança operou-se em meus sonhos de ambição. Como o sol nascendo de uma grossa camada de nuvens, uma visão do mundo invisível passou diante de meus olhos: uma Deidade maior que os deuses do Império manifestou-se a mim. Estela, sou um cristão!

Com muitas lágrimas, ele descreveu a visão que tivera: a miraculosa intervenção de Deus para trazê-lo à fé. Naquele dia. ele pós em ordem suas obrigações, a fim de entregar-se generosamente à vocação divina. Mensageiros foram confiados de conduzi-lo às catacumbas, onde o bispo cristão dirigia a Igreja de Deus. Apesar das objeções de sua tímida esposa, que temia as terríveis conseqüências envolvidas na profissão do cristianismo naqueles dias de horror, ele apressou-se, na primeira hora após o anoitecer, às criptas do Caminho Salariano.

E provável que as terríveis perseguições de Domiciano tenham sido tão somente amainadas, nesse tempo. Os cristãos eram forçados a abrigar-se da fúria da tempestade nas catacumbas. E enquanto, com a permissão de Deus, não podiam pregar publicamente a mensagem da graça da sua redenção, Deus lhes supria o ministério pelas operações interiores da graça, e dava aos seus apóstolos banidos a consolação de uma colheita mais abundante. Se, conforme imaginamos, o martírio de Eustáquio só ocorreu cerca de dezesseis anos após o seu batismo, Trajano era o imperador nesse tempo.




O pastor cristão abrigara-se das tempestades da perseguição numa cripta, nas catacumbas da Via Salara. Deus, em sua misericórdia, informou-o, numa visão, sobre a conversão de Plácido. O pastor estava ajoelhado sobre a lápide marmórea do túmulo de um mártir, e uma pequena lâmpada a óleo lançava uma luz fraca e trêmula sobre as lajes sepulcrais. O silêncio desses corredores dos monos era quebrado apenas pelo suave murmúrio das orações, ou pelo eco abafado dos martelos e machados dos coveiros.

De repente, o servo de Deus viu uma das paredes desaparecer de suas vistas, e em lugar dela, surgiu uma tocante cena passada nos Apeninos. Na ponta de uma rocha, estava um belo antílope, e em meio ao clarão que cercava o lugar, um general romano orava ajoelhado. A visão desfez-se rapidamente, e o líder cristão, compreendendo que a graça divina havia sido revelada a uma nobre alma, permaneceu um longo tempo em poderosa oração.
Quando a noite envolveu a cidade, um grupo misterioso, espessamente velado e oculto por grandes capas, passou pelo portão Salariano. Nenhuma interrogação foi feita, porque a capa militar de Plácido era uma garantia de proteção. Duas crianças, de três e cinco anos, agarravam com temor infantil as vestimentas da mãe, e seus passinhos ligeiros sobre o pavimento maciço harmonizavam musicalmente com as passadas solenes de seu pai militar. Em silêncio, passaram pelas habitações imponentes, que adornavam ambos os lados da estrada, e logo alcançaram o suave declive conhecido pelos cristãos antigos como Clivum Cumeris.

O guia conduziu-os através de longos e estreitos corredores, e introduziu-os na presença do líder cristão, que abraçou Plácido como se o conhecesse havia muitos anos.



Podemos imaginar a alegria com que ele fez passar pelas águas batismais o general romano e sua família. Foi nessa ocasião que Plácido recebeu o nome de Eustáquio; sua esposa passou a ser chamada de Teopista, e os dois filhos, Ágapo e Teopistão. Todos os nomes derivavam-se do grego, expressando honra a Deus.

As palavras do sacerdote à família recém-convertida foram para que tomassem
corajosamente a cruz, e a suportassem como fizera o seu Senhor crucificado; eles
haviam sido chamados a glorificar a Deus nos dias de dificuldade, e os cristãos
são provados na fornalha da aflição; "por meio de muitas tributações devemos
entrar no reino do céu'

Suas palavras foram proféticas: veremos Plácido sendo provado, e declarado fiel.
Deus prova aqueles a quem ama. Havendo escolhido a Plácido como um vaso para a sua glória, provou-o por uma série de aflições, que fizeram a paciência desse grande servo brilhar mais que qualquer outra virtude. Seus biógrafos têm-no comparado ao patriarca Jó. Mas aquela luz que lhe penetrou o coração, ensinou-lhe o valor secreto das provas e aflições.




Após ser batizado e recebido na Igreja, Plácido retornou ao monte Sabino. Onde tivera seu encontro com Jesus. Fez questão de agradecer a Deus naquele local, para ele, memorável. O Altíssimo concedeu-lhe, então, outra visão que, ao mesmo tempo em que o consolava, mostrava-lhe as provações que o aguardavam.

Plácido mal retornara ao lar depois disso, quando a tormenta abateu-se sobre ele, esmagando-o de todos os lados. A triste narrativa de suas provações despertará compaixão até nos corações mais endurecidos. Em poucos dias, Plácido perdeu todos os seus cavalos e gado; cada ser vivo de sua casa, até mesmo os empregados domésticos, foram varridos por uma peste virulenta. A temível melancolia que a morte espalhou à sua volta, o mau cheiro das carcaças insepultas, e a insalubridade da atmosfera pútrida obrigaram-no a deixar a casa por algum tempo; e isto foi a fonte de novas aflições.

Durante sua ausência, ladrões entraram-lhe na casa e roubaram tudo o que possuía, reduzindo-o à absoluta pobreza. Por esse tempo, a cidade estava regozijando e celebrando o triunfo dos exércitos romanos sobre os persas. Plácido não pôde tomar parte nessas festividades, e vencido pela tristeza, o desapontamento e a vergonha,

combinou com Teopista, sua esposa, irem viver num país desconhecido, onde ao



menos pudessem carregar a sua dor e pobreza sem o insulto cruel dos amigos
orgulhosos e insensíveis.

Seguiram o caminho para Ostia, e lá encontraram uma embarcação prestes
a partir para o Egito. Eles não possuíam dinheiro para a passagem, mas o capitão
do navio, homem mau e cruel, vendo a juventude e beleza de Teopista, sentiu
nascer no coração uma paixão impura: permitiu então que subissem a bordo,
pensando num modo de satisfazer seus desejos pecaminosos homem nada sabia
da bela e sublime virtude da castidade numa mulher cristã.

E quando viu-se tratado com o desprezo da virtude indignada diante de uma sugestão cochichada de infidelidade, retorceu-se em seu desapontamento, e pensou numa vingança. O Diabo sugeriu-lhe um plano. Chegando à costa da África, o capitão exigiu novamente o pagamento das passagens, e intimou Plácido: se ele não pagasse, ficaria com Teopista como refém.

Ele foi enviado à terra com seus dois filhinhos desamparados, enquanto sua bela e fiel esposa ficou detida no navio, que logo zarpou para outro porto.

Pobre Plácido, sentiu as lágrimas quentes deslizando-lhe pela face, enquanto via as velas da pequena embarcação enfunarem-se com um vento favorável, e levarem para longe o maior tesouro que ele possuía neste mundo. E viu a si mesmo numa terra estéril e inóspita, exilado, pobre e solitário. Se as suas fiéis legiões soubessem de sua triste sorte, como suas espadas confiáveis relampejariam em vindicação de seu general injuriado! Olhando para os filhos,agora sem mãe, ele puxou-os para junto de seu coração partido, e apontando com um dedo trêmulo o navio que agora era uma mancha branca no horizonte azul, afirmou:

- Vossa mãe foi dada a um estranho.

Apertando a testa com a mão, Plácido curvou-se e chorou amargamente. Não há pontada de sofrimento humano tão pungente como a afeição frustrada, e ela é mais agudamente sentida quando o objeto de nosso amor é entregue não à morte, à matança, ou à penúria, mas à infâmia e à desonra.




Contudo, Recordando suas promessas a Deus na ravina dos Apeninos, Plácido
imediatamente reprimiu seu pesar; levantando-se com uma determinação como a
de Jó, e tomando os dois filhos pela mão, adentrou aquela região com um coração
valente e resignado. Deus, porém, tinha outras aflições para prová-lo ainda mais.

Plácido não havia ido muito longe, quando topou com um rio bastante alargado por chuvas tardias. Era um rio vadeável, mas vendo que seria perigoso levar as duas crianças juntas ele decidiu levar uma de cada vez. Deixando na margem a mais velha, entrou na corrente com a mais jovem. Mal alcançara a margem oposta, quando o grito da que ficara atraiu-lhe a atenção. Olhando para trás, viu um leão pegando a criança com a boca e arrastando-a para devorá-la.

O pai aflito depositou á margem o filho que levava nos braços, e sem temer o perigo, mergulhou uma vez mais na correnteza. A angústia deve ser tremenda, quando faz um homem desarmado acreditar que pode caçar e lutar com o rei da floresta.

Mal ele saíra da água, quando a outra criança foi atacada por um lobo.

Esta última visão paralisou-lhe a coragem; ele não pôde dar mais nem um passo.



Caiu de joelhos, e apelou ao grande Deus que, sabia ele, dispusera todas as
coisas.

Com o fervor de sua fé iniciante, e a dor de um pai desolado, orou pedindo

paciência, e que nenhuma blasfêmia lhe saísse dos lábios; que nenhum receio



viesse minar-lhe a adoração. O general permaneceu algum tempo de joelhos, e
sentiu o bálsamo da consolação celeste gotejar-lhe gradualmente sobre a alma
angustiada.

Plácido confiara a família a Deus, e sabia que eles estavam felizes. Quanto a si, determinou suportar virilmente os poucos dias de sofrimento que a Providência lhe designara. Levantou-se uma vez mais da oração, fortalecido e consolado, mais separado de toda consolação humana, e mais unido a Deus.

Logo deixou aquelas paragens tão dolorosas, e escapou para outra parte do país.

A seguir, encontramos Plácido como um pobre trabalhador numa fazenda chamada Bardyssa. Mas esta é a última parte da escura noite de sua provação; o
crepúsculo que precede o glorioso nascer do sol.

O Deus Todo-poderoso havia provado o seu servo com a mais severa adversidade que pode sobrevir a um omem; no redemoinho da aflição, Ele fez voar todo o seu conforto temporal, a sua felicidade doméstica, e a sua afeição paternal. E o vaso escolhido, novo na fé, foi achado fiel, merecedor da coroa.

Alguns anos haviam se passado desde que Plácido perdera a esposa e os filhos, e ele passara todo o tempo ignorado, em trabalho, oração, solidão, subindo cada vez mais alto na escada da perfeição, e em união com Deus. Chegara, porém, o tempo de sua recompensa pelo mover da mão de Deus.

A grande capital do Império Romano encontrava-se em total comoção.




Notícias do leste diziam que os persas, e outras nações, haviam atravessado a
fronteira, e estavam devastando tudo diante de si. Os veteranos poliam as espadas, e exércitos de jovens afluíam de todas as províncias. Rumores recentes do avanço do inimigo deram um novo impulso à agitação, e uma expedição de magnitude e importância maiores que as usuais foi rapidamente preparada.

A alma arrogante de Trajano, que ainda ocupava o trono dos césares, não podia
tolerar, nem por um momento, a menor violação do Império, ou o arrefecimento
de sua glória pessoal. Ele não perdeu tempo nem poupou despesas ao lançar-se
rápida e pesadamente sobre o ousado inimigo.

Mas a quem confiaria ele as legiões bélicas e o próprio destino do Império? À sua volta só via jovens e homens inexperientes.

Trajano pensou em Plácido, o grande general, ídolo do exército e terror dos inimigos, o comandante de sua cavalaria, que em tempos passados levara a maré
da vitória aos mais distantes termos do Império, Ouvira boatos de que ainda
estava vivo, mas afastado da vida pública. Trajano agarrou-se a esses boatos com
a avidez de um homem cuja esperança malograra, e arriscou tudo numa última
oportunidade. Ofereceu generosa recompensa a quem descobrisse o refúgio de
Plácido e o trouxesse novamente ao comando das legiões de ferro de seu Império.

Ardendo de ansiedade e dúvidas, ele foi adiando de um dia para outro a partida
da expedição, esperando receber notícias de seu general favorito.

E o soberano não foi desapontado: encontraram Plácido.
Dois veteranos, Antíoco e Acácio, partiram para as províncias egípcias, à procura de Plácido. Suas incessantes perambulações e inquirições já pareciam infrutíferas, quando, certa manhã, prestes a desistirem da busca, passaram por uma bela e bem cuidada fazenda, e avistaram, a curta distância de si, um pobre lavrador. Aproximaram-se do homem, e indagaram se não vivia por aquelas bandas um certo cidadão romano, chamado Plácido.




Os dois soldados acreditaram ter visto algo naquele homem que lhes recordava o seu general; a nobreza de sua aparência e conduta falava de alguém que já conhecera dias melhores. Eles até pensaram ver em suas feições cansadas,
bronzeadas pelo sol e enrugadas pelo desgosto, alguns traços do amável
semblante de Plácido.

Contudo... não podia ser... Seu general um exilado? Um lavrador naquele lugar miserável? Que reverso da fortuna o teria reduzido a isto?

Como poderia um homem tão importante haver sido lançado da honra e da glória à obscuridade e a pobreza?

Mas o homem com os andrajos de lavrador pobre reconhecera naqueles soldados dois dos mais bravos veteranos de suas legiões.' A lembrança das guerras e batalhas c vitórias de outros tempos cruzou-lhe a mente; o papel que aqueles dois tiveram na derrocada do inimigo, sua bravura ao seu lado nos campos de batalha, as cicatrizes recebidas nas lutas sangrentas - tudo assaltou-o num momento, despertando cada bravo sentimento de sua alma.

Plácido estava prestes a correr para eles de braços abertos, mas a prudência reteve-o onde estava, e numa atitude de autocontrole, suprimiu seus sentimentos exaltados.

Compondo-se dignamente com um suspiro que por si só revelava a luta dentro de
si, o general perguntou: — Por que estais procurando por Plácido?

Enquanto Antíoco relatava como os adversários haviam uma vez mais declarado guerra no leste, e que o imperador desejava confiar a expedição unicamente àquele general, e por isso enviara à sua procura, a todas as partes, os soldados que haviam servido sob suas ordens, Plácido não pôde mais conter os sentimentos. Abrindo a rude vestimenta que lhe cobria as cicatrizes do peito, mostrou-as aos dois veteranos atônitos, e revelou-lhes ser o general que procuravam. No momento seguinte, eles estavam abraçados ao seu pescoço, e derramando lágrimas de alegria.

Plácido foi recebido com alegria pelo povo; a confiança do exercito foi restaurada, e um novo alento surgiu em todas as tropas. Combates e triunfos foram antecipados e declarados antes de serem lutados e alcançados. O imperador deleitou-se;
abraçou o antigo comandante da cavalaria, ouvindo com interesse a história de
suas vicissitudes, suas perdas e luto. E prendendo-lhe à cintura o cinto de ouro
do comando consular, suplicou-lhe que desembainhasse uma vez mais a espada
em prol do Império.

Durante a sua provação e resignação nos campos solitários do Egito, o Espírito Santo já lhe revelara que logo chegaria o dia da restauração de tudo o que ele perdera neste mundo. Eis aqui o primeiro passo no cumprimento de seu sonho; vejamos como Deus realizou o restante:




Enquanto Plácido coloca em ordem o seu rude exército, e exercita seus soldados na terrível ciência da guerra, retrocedamos alguns anos, e demos uma olhada na pobre e infeliz Teopista deixada no barco daquele capitão tirano, que

cruelmente a separara de seu marido e de seus filhos. Sem dúvida, na empatia de seu coração piedoso, o leitor compadeceu-se dela em sua aflição, e esperou que alguma circunstância afortunada viesse salvála.




Acaso o Todo-Poderoso já abandonou seus filhos quando a pureza é ameaçada? Não lhe comove o coração a inocência indefesa de uma mulher?

Não tema pela virtude e fidelidade de Teopista. Deus é o seu escudo. Quem pode prevalecer contra o Altíssimo? Os meios que Ele adota para proteger seus servos são silenciosos, consoladores e misericordiosos. Deus não acertou o capitão com um golpe merecido, ma inspirou-lhe no coração um sentimento de ternura e piedade que o fez corar pela crueldade que fizera à jovem mãe.

Mal o vento afastara a embarcação das vistas de Plácido e dos meninos, os soluços do coração partido de Teopista suscitaram um fio de piedade nos sentimentos do
pagão. Ao mesmo tempo. Deus removeu-lhe os estímulos da carne, e o fez amar e
admirar em sua cativa a virtude que ele jamais conhecera.

A sublimidade da virtude que brilhou na fidelidade da matrona cristã, e a paciência e o perdão daquela filha da desdita venceram de tal modo o capitão, que, em vez de ser seu inimigo e opressor, tornou-se seu protetor e guardião.

Desembarcou Teopista no porto seguinte, e deu-lhe dinheiro e víveres para que se sustentasse por algum tempo. Ela também teve a sua cota de provações; quinze anos de sofrimento e exílio como provaram-na merecedora da alegria e da coroa reservadas para ela.

Tudo pronto, a expedição partiu para o leste. O espírito de alegria e bravura que animava lados prenunciava os maiores triunfes. Eles fluíam aos milhares pelos portões orientais da cidade, e enquanto o sol matinal refletia em sua alabardas e lanças lustrosas. as tumbas de seus monos importantes, alinhadas na Via Apia, faziam ecoar uma vez mais as canções de guerra das irresistíveis legiões do Império Romano.

O líder octogenário - Plácido, o cristão -comandava a retaguarda, numa biga puxada por dois belos cavalos árabes.

E desnecessário demorar-nos sobre a narrativa, tantas vezes repetida, do triunfo romano.

As legiões despejaram-se como avalanches alpinas sobre o território inimigo, esmagando em sua passagem tudo o que se lhes opunha. Não apenas os rebeldes eram sujeitados, como a águia conquistadora estendia suas asas sobre novos domínios, e novas províncias eram acrescidas ao vasto território dos césares.

A brandura e a habilidade de Plácido sabiam transformar em bem todas as coisas; em suas conquistas, evitava a mortandade e o derramamento de sangue desnecessários. Ele perdoava livremente, e nunca retribuía a resistência de um
povo corajoso com as retaliações tão terríveis das crônicas da guerra pagã.

Todo exército tem seus heróis. A campanha de Plácido estava quase no fim,
quando se revelaram os seus verdadeiros soldados. Onde a conquista fora fácil,
todos eram bravos; chegado porém um momento de perigo e provação, os louros da fama distinguiram aqueles que o mereciam.

O exército foi surpreendido numa emboscada, mas salvo pela pronta ação de dois moços pertencentes á unidade dos númidas.

Eram dois jovens corajosos, que se haviam conhecido nas fileiras e

se tornado amigos. Estavam ambos vagueando fora do acampamento, quando



ouviram o grito: "Às armas!"' Correram à vanguarda como leões, e animaram os
companheiros. Lutaram juntos contra forças terríveis, mas suas alabardas eram
manejadas rápida e habilmente, causando destruição por toda parte,alguns bravos companheiros, resistiram ao progresso do adversário até que o seu próprio exército ficasse livre. Uma resistência tão brava e inesperada causou pânico nas fileiras inimigas, que fugiram ao massacre. Alguns milhares foram mortos, e o exército da oposição foi tão completamente destruído! que nunca mais foi visto no campo de batalha.

O general vira tudo o que se passara, e quando a batalha chegou ao fim, mandou chamar os dois heróis que salvaram o exército, elevou-os ao cargo de capitão, e concedeu-lhes a honra de sua amizade.

O exército avançara de triunfo em triunfo, e devemos agora descortinar o cenário de nossa narrativa: uma planície agreste na costa da Arábia, onde eles estavam acampados antes do retorno à capital. Viam-se cabanas de pescadores a beira-mar, e aqui e ali, às margens férteis de um rio, pequenas e graciosas casas cercadas de jardins c vinhedos. Dentre elas, uma destaca se pela beleza, no suave
declive para o rio. Pertencia a uma pobre viúva, que vivia dos frutos de seu quintal e do trabalho de suas mãos.

O velho general, fatigado da batalha, armou aí a sua barraca, pretendendo
descansar um pouco antes de empreender a fatigante viagem de volta. Junto dele
ficaram os dois jovens capitães, a quem ele fizera seus confidentes, e tratava
como filhos adotivos. Certamente, o ancião via na juventude e beleza dos rapazes o

que os seus próprios filhos teriam se tornai se suas vidas houvessem sido



preservadas. Uma atração invisível fez com que ele os amasse ternamente, não
suportando que se separassem dele. Os moços também desenvolveram uma
profunda amizade entre si. A semelhança nos sentimentos e disposição, o amor
secreto pela virtude, e um certo traço de nobreza em cada pensamento e ação, não apenas os ligava como os laços inseparáveis da harmonia, mas os elevava na
estima de quantos os conheciam.

Um dia, como de costume, passeavam eles à margem do regato. À sua volta, tudo era frescor e beleza. Os pássaros cantavam nas árvores, e as flores, que cresciam abundantemente na vizinhança, espalhavam mil odores na brisa que ondulava a superfície da água. Os dois soldados sentaram-se à sombra de uma figueira, e entabularam animada conversa. O mais velho era alto e bonito, e aparentava ter dezoito anos; parecia ser uns dois anos mais velho seu colega.

Era um jovem de ânimo calado e gentil, e às vezes parecia absorto em pensamentos, como se uma nuvem pairasse sobre ele. O amigo já notara isto, e
particularmente

nesse dia, observou que, durante a conversa, ele parava e olhava distraidamente para o riacho, que corria rápido e mais volumoso, em conseqüência das chuvas que caíra sobre as montanha vizinhas. Naquela familiaridade permitida pela amizade comprovada, o mais jovem indagou do companheiro a causa de sua preocupação.




— Faz algum tempo que nos conhecemos — começou o jovem capitão —. E percebo que tens trancado no coração um segredo que me consolaria e interessaria ouvir. Conta-me a tua história, para que eu participe da tua tristeza.

Tu sabes que sou teu amigo.

O outro fitou-o com bondade, ao mesmo tempo que parecia ler-lhe o semblante para ver se era de fato sincero. Depois, voltando os olhos o céu e suspirando, puxou a mão do companheiro para que se aproximasse mais. e confessou exaltadamente:

— Sim, vou contar-te uma estranha história, mas tu não deves trair-me o



segredo. Sou um cidadão romano, e sou cristão.

O jovem sobressaltou-se como que abalado por um trovão, mas o outro, impedindo-o de dizer uma palavra, e chamando-o pelo nome, continuou num tom majestoso e cheio de bondade:

— Embora eu tenha me alistado no exercito romano na mesma província que tu, não nasci lá. Meu pai era um general romano, e homem de grande apreço.

Lembro-me de um dia, quando eu tinha cinco anos, ele saiu para caçar, e só
voltou na manhã seguinte. Chegou em casa agitado e disse coisas que fizeram
minha mãe chorar. Na noite seguinte, quando estava tudo escuro e silencioso,
meu pai levou-me a mim e a meu irmãozinho, que tinha apenas três anos, a uma
caverna sombria. Depois de passarmos por corredores escuros e sinuosos,
entramos num compartimento iluminado, Lá estava um homem idoso, sentado
numa cadeira de pedra, usando no pescoço uma bonita estola. As paredes do
pequeno quarto estavam cobertas de figuras de homens, peixes e cordeiros. 0
venerável ancião conversou com meu pai e minha mãe por um longo tempo.

Não recordo todas as suas palavras, mas ele falou do Deus verdadeiro, desconhecido dos pagãos, e de todas as coisas boas que Deus fizera pelo homem: como o amara e morrera por ele. e lhe prometera felicidade eterna. Meus pais ficaram visivelmente afetados, e meu pai chorou novamente, como se tivesse feito algo errado. Então o velho batizou-nos nas águas, e deu-nos nomes diferentes. Recebi o nome de Agapo. Quando, após várias orações, deixamos aquele lugar, meus pais pareciam regozijar-se. Sem poder parar com a sua historia, o jovem
continuou:

- Logo depois, meu pai perdeu tudo o que possuía; seu gado e seus cavalos
morreram de uma terrível moléstia: ate os escravos e servos morreram. Deixamos
então a nossa casa, e fomos para uma vinha fora da cidade. Em sua ausência,
meu pai foi roubado de tudo o que possuía, e reduzido à pobreza. Então, uma
noite, ele levou minha mãe, meu irmão e eu ao litoral, c embarcamos num navio,
passando quinze dias no mar agitado.

Quando aportamos, meu pai, meu irmão e eu fomos enviados à terra, mas minha mãe ficou no navio, que partiu imediatamente. Oh! Nunca esquecerei a aflição de meu pobre pai naquela ocasião.

O jovem enterrou o rosto nas mãos, e chorou por algum tempo. Enquanto isso, uma lágrima passou despercebida pela face de seu companheiro.

Levantando novamente a cabeça, ele continuou a história em meio a lágrimas e
profundos suspiros.

- Meu pai pegou meu irmão no colo, enquanto puxava-me pela mão, e entramos naquela região. Chegamos a um rio de correnteza veloz, e como meu pai não podia levar-nos a ambos de uma vez, mandou-me ficar à margem, enquanto levaria primeiro meu irmãozinho, e prometeu voltar para buscar-me.

Entretanto, atravessava ele o rio, quando... Oh! Nunca esquecerei! Um leão saiu do mato e agarrou-me.

Um estremecimento passou pelo jovem ouvinte. Sem controlar a agitação, ele gritou:

— Que estranho! Mas conta-me, como foste salvo?

O moço parecia em grande comoção. Algumas palavras vieram-lhe aos lábios, mas ele as reprimiu e ouviu com uma ansiedade inerte o restante da narrativa.

— Bem — prosseguiu o jovem capitão —, gritei por socorro, mas era tarde demais. O leão apanhou-me com a boca... ainda tenho no corpo as marcas de

seus dentes... e carregou-me para a floresta. Afortunadamente, passavam por ali



alguns pastores. Ao ver-me presa do leão, soltaram os cães atrás dele. Um dos
cães agarrou-me e pôs-se a puxar-me, então o leão me largou e agarrou o cão, indo embora com ele. Os pastores levaram-me a sua casa, onde uma boa mulher deitou-me na cama e cuidou de mim. Recuperei-me e cresci naquela casa, mas nunca mais vi meu pai e meu irmão.

Apertando o braço do amigo, e com os olhos rasos d’água, ele completou:

— Não admira, meu amigo, que eu esteja triste. Este riacho, estas árvores, e esta planície agreste onde estamos acampados recordam-me aquelas terríveis cenas de minha infância. Acaso posso esquecer o dia em que perdi pai, mãe, irmão, tudo?

Ele não pôde dizer mais nada; escondeu novamente o rosto nas mãos e chorou amargamente.

Não obstante, observara, enquanto contava sua história, que seu amigo ficara cada vez mais emocionado, e de tempos em tempos deixava escapar frases desconexas e expressões de surpresa, como, "Estranho! Deve ser! Oh. céus!".

Após um instante de silêncio, o mais jovem gritou com força e exaltação:

— Ágapo, acho que sou teu irmão!

— Como? — espantou-se o outro. — Fala! Dize o que estás pensando, ou...

Tu estás menosprezando o meu sofrimento?

— Também perdi meus pais na infância — replicou rapidamente o jovem.

As pessoas que me criaram contavam que haviam me salvado de um lobo perto do rio Cobar, e que eu era de uma nobre família romana, por causa desse ornamento de ouro que trago ao pescoço.

Enquanto ele levava a mão ao peito para pegar o adorno, o outro pôs-se de pé num salto, e gritou:

— Mostra-o! Ele tem gravado o nome Teopisto e o mês de março?

— Sim, aqui está.

Agapo, reconhecendo a medalha que sua mãe lhes pendurara ao pescoço na manhã seguinte ao batismo, tomou nos braços o jovem, exclamando:

— Meu irmão! Meu irmão!

As explicações não apenas colocaram o fato além das dúvidas, como puseram juntos os dois irmãos durante horas, abraçando-se, volta e meia, com lágrimas de afeição. Contaram um ao outro todas as minúcias de suas vidas.

Teopisto fora salvo do lobo por um lavrador, que o criara como um de seus filhos.
Eles cresceram separados por poucos quilômetros, e não o sabiam, mas Deus, cujos caminhos são inescrutáveis, reuniu-os no exército romano, a fim de restitui-los aos pais como recompensa por sua virtude. A alegria dos jovens estava para ser acrescentada por outra descoberta ainda mais consoladora e extraordinária. O leitor ja sabe: o general era seu pai.

Quando a comoção do primeiro momento amainara, concordaram em procurar o general e informá-lo da incrível descoberta. Encontraram o ancião em sua tenda, sentado à mesa tosca. a face oculta nas mãos, absorto em meditações.

O mais velho correu para ele, e anunciou que tinha notícias surpreendentes e alegres para dar-lhe. O general levantou a cabeça; seus olhos
estavam úmidos, e uma nuvem de melancolia sobreava-lhe a fronte. Olhando com
um sorriso paterno os jovens animados, convidou:

— Então falai, meus filhos, pois a vossa alegria será a minha. A felicidade dos outros faz-nos esquecer nossas tristezas; vossas palavras virão como um raio de sol para o meu coração melancólico. Ah, este dia me trouxe tristes eminiscências... É o aniversário de uma série de infortúnios que me privaram de

minha esposa e meus filhos.




Plácido fez uma pausa, e erguendo ao

céu os olhos turvos de lágrimas, exclamou: — Mas é a vontade dEle, que reina sobre tudo. Ele deu, e Ele tomou; bendito seja seu santo nome!




Os jovens estavam estupefatos. Era a primeira vez que o velho general orava ao Deus verdadeiro diante deles. Mil pensamentos cruzaram-lhes a mente;
não sabiam se primeiro deviam declarar que também eram cristãos, ou relatar a
descoberta que fizeram. Amavam o velho como a um pai. e seu amolecido coração
derreteu-se uma vez mais ao ver sofrer o veterano. Algumas explanações ligeiras
bastaram para revelar a verdade: estavam falando com seu pai! No momento
seguinte, os jovens estavam abraçados ao seu pescoço, e o velho comandante
apertava ao peito seus filhos valentes.

Deixe a imaginação pintar o quadro que pena alguma pode desenhar. Um momento de alegria como este pesa mais que os anos de negras provações.

Todavia, a noite escura e tempestuosa de Plácido já ia passando, e os raios
luminosos da recompensa brilhavam sobre ele. Uma luminosidade que, pelo resto
de sua vida, seria nublada, exceto por um momento: o momento que o introduziria na claridade da beatitude eterna e imutável - o momento em que sofreria a morte do martírio pela fé em Cristo.
Enquanto tinham lugar os eventos que relatamos, uma visível comoção



envolvia o acampamento. Um mensageiro chegara em grande pressa. Trazia a
notícia da morte de Trajano, em Selinonte (uma cidade da Cilícia), e da eleição de
Adriano pelo exército. A eleição fora confirmada pelo senado, o exército de Plácido
recebera ordens de retomar imediatamente para reunir-se em triunfo nas
celebrações fúnebres do imperador falecido. Os soldados sob o comando de
Plácido haviam estado ausentes por quase dois anos, e achavam-se esgotados
pelas privações da guerra. Saudaram com deleite a notícia de seu retomo. Os
gritos ensurdecedores, anunciando a boa nova, alcançaram a tenda de Plácido
antes que o correio chegasse até ele. O mensageiro, com os pés feridos e cobertos
de pó, entregou ao general um rolo de pergaminho, onde estava escrito:
Aprouve aos deuses elevar-nos ao trono do Império Decretamos uma marcha



triunfal pelo exercito de Plácido, e ordenamos ao bravo general retomar
imediatamente a capital

Adriano.




O general segurou por um momento o pergaminho, completamente distraído. Erguendo lentamente os olhos ao céu, proferiu:

— Tu estabeleces, brilhante Sol de minha esperança. Aqueles destinos prefigurados em cochichos proféticos são rapidamente feitos realidade. Eia! Para
Roma! Ao triunfo! Ao martírio!

Ordenou então que desarmassem as tendas e se preparassem para a marcha geral no dia seguinte. Dispensando a todos de sua tenda, permaneceu sozinho, em comunhão com Deu agradecendo-o pela felicidade daquele dia.

Percorria rapidamente a tenda; a visão do martírio futuro passando diante dele.
Podemos ouvir, na imaginação, o tom majestoso de seu ardente solilóquio;

"Eia! Ao triunfo! Da carruagem de ouro ao túmulo.




"Nos sonhos da ambição jovem e mal-orientada. desejei a honra que agora está ao meu alcance, mas à luz do destino mais elevado que se segue, ela não passa de bela sombra que flutua diante da imaginação enfeitiçada. como as  bolhas douradas da correnteza, que se desfazem no ar quanto tentamos pegá-las.

"Meus filhos! Bebereis do meu cálice? Passeareis na mesma carruagem e sorvereis um copo de alegria terrena, até alcançardes o átrio do templo de Júpiter. Então sereis amarrados à mesma estaca; as chamas de nossa pira funerária enviarão nosso espírito livre à terra do triunfo eterno, onde o brado de alegria real soará com as congratulações dos coros celestes pela nossa vitória cristã!

"Pobre Teopista! Sua nobre alma ainda está esperando para completar o holocausto! Estaria sendo forçada na casa de algum vilão?




"Quem sabe você morra na juventude: ela pode ser curvada com aflições bem mais pesadas que a tumba poderosa, que pesou sobre seu pó suave - uma nuvem pode colher sua beleza, e uma melancolia em seus olhos escuros, profetizar a sentença do céu aos seus favoritos, morte prematura.”




Plácido foi interrompido por um servo anunciando que a pobre mulher, dona do jardim onde ele armara sua tenda, desejava vê-lo. Ele não era um homem orgulhoso e austero, que deixasse os assuntos dos pobres serem resolvidos por oficiais sem coração. Era acessível ao mais rude soldado de seu acampamento, bem como ao mais elevado oficial. Com um gesto indicou que trouxessem a mulher.

Ela parecia avançada em anos, e vítima de muito sofrimento. Sua  compleição enfraquecia e a simplicidade de seu vestido falavam de necessidade e pobreza; contudo, suas maneai eram nobres. Seus olhos injetados revelavam o  quanto havia chorado. As lágrimas haviam deixado sulcos em sua face; seu semblante, no entanto, em toda a sua terna expressão de cuidados e dores, evidenciavam traços de beleza, nobreza, e inocência. Havendo entrado na tenda, ela caiu de joelhos diante de Plácido:

— Grande chefe c líder dos exércitos de Roma! Peço-te que te compadeças do sofrimento de uma pobre c desafortunada mulher. Sou cidadã romana. Alguns anos atrás, fui separada de meu marido e filhos, e trazida para este lugar à força,
para propósitos ilícitos. Mas empenho minha palavra, perante o senhor e o céu.
nunca deixei de ser fiel a meu marido e a meus filhos.

Estou aqui no exílio, em tristeza e miséria. Suplico-te, pelo amor que o senhor tem por tua esposa e teus filhos, leva-me de volta a Roma, aos meus amigos, aos meus..:

Ela não pôde dizer mais nada. Em sua exaltação, pôs-se de pé, apertando os dedos cruzados,e olhando fixamente para Plácido, ela... reconheceu o marido.




No momento em que ela apelara ao amor que o general tinha pela esposa, ele levou a mão à testa para ocultar as lágrimas denunciadoras de seu coração aflito. Virando o rosto, expôs uma grande cicatriz atrás da orelha. O olhar da matrona reconheceu o ferimento que seu esposo recebera na guerra judaica, e um olhar atento às feições cansadas de Plácido convenceu-a. Teopista lançou-se para ele, e com os soluços sufocando cada palavra, pediu:

— Dizei-me. suplico-te. tu és Plácido, o comandante da cavalaria romana, a quem o Deus verdadeiro falou nas montanhas da Itália, que foi batizado e mudou o nome para Eustáquio. e perdeu sua esposa...?




— Sim! Sim! — interrompeu-a Plácido — A senhora a conhece? Fala! Ela ainda está viva? A pobre criatura fez um esforço para jogar-se nos braços dele, mas vencida pela emoção, caiu chorando: — Eu sou Teopista!

O corpo enfraquecido de Teopista não pode suportar o choque da descoberta repentina. Quando recuperou os movimentos, ela ainda delirava, como se diante dela houvesse passado um sonho maravilhoso. Quando lhe retornou a razão, ela indagou:




— É mesmo verdade, ou um espírito maligno cria fantasmas para enganarme?

Oh, como Deus é bom!

Uma hora se passara, e a tenda de Plácido era cenário de uma alegria raramente experimentada neste lado da vida. Quatro corações solitários e moídos foram curados: o esposo e a esposa, os pais e os filhos, após anos de separação e provações, foram postos juntos e se reconheceram; tudo isto no espaço de uma
hora.

O Deus Todo-poderoso não os abandonara por um momento sequer, desde que decretara as vicissitudes que os provaria; comprovando-lhes a fidelidade. sabia como recompensá-los. A alegria que Deus despeja no coração dos fiéis é uma regato da poderosa torrente de delícias inefáveis que inunda a alma dos santos. Se os cristãos soubessem como Deus zela com especial providência sobre aflitos, se imaginassem  como

problemas e aflições são enviados diretamente por Ele, como a dor perderia a sua ferroada! Como a amargura diminuiria, e como o desapontamento se tornaria não apenas suportável, mas uma fonte de paz interior! A alma aflita, ajoelhada humildemente diante de Cristo, é o tipo do verdadeiro cristão.




Se a história de Plácido cair nas mãos de um aflito, saiba ele, como aquela alma valente e generosa, aguardar sem blasfêmia as disposições da Providência, reprimindo até mesmo um pensamento repreensivo para com Deus. e cada
murmúrio de impaciência. Tão certo como J horas de aflição e angústia são longas c escuras, o momento da recompensa virá logo.





 Quando o acampamento foi levantado, e o exército pôs-se em marcha para Roma, Plácido sabia, por inspiração, que estava indo para a última e mais severa luta que Deus lhe tinha reservado: o seu triunfo na morte. Triunfo sobre o eu, sobre o mundo, c sobre os poderes das trevas. Ele dedicou todo o seu tempo a orar e a instruir os filhos na sublime moralidade e doutrina da fé cristã.

E pediu a Deus um favor que lhe foi concedido: já que Ele havia permitido, em sua misericórdia, abraçar novamente a família, que a felicidade de sua união não fosse, nunca mais, anuviada pela separação; se o testemunho de seu sangue fosse exigido para fortificação da fé e da glória da Igreja, que a sua esposa e os seus filhos pudessem participar do mesmo favor recompensador da graça divina.

Enquanto as legiões marcham do leste, sigamos adiante delas até a grande capital, e preparemos nosso leitor para as cenas que em breve se seguirão. A bela e comovente história do nobre general romano está para ter um fim trágico - um dos desfechos mais luzentes nas páginas da Igreja, porém um dos mais escuros nos anais da ingratidão e da crueldade pagã.

Adriano entrou em Roma na glória emprestada do imperador falecido; os gritos de triunfo ressoavam pela cidade. Ele deificou Trajano da tumba de Augusto, e enviou a águia de seu espírito à liberdade dos céus; dedicou ao conquistador a soberba coluna erigida em sua memória, e a arena do Coliseu foi uma vez mais molhada com o sangue dos gladiadores e das vítimas. Durante os jogos, mais de duzentos leões foram trucidados, e um número imenso de cativos e escravos foi levado à morte.
Foi num anoitecer, durante essas celebrações, que se espalhou na cidade a
notícia de que o exército de Plácido vinha chegando, e já se achava na Via Apia.
As diversões ganharam um novo impulso, e outro triunfo e procissão foram
preparados para o exército vitorioso. Não havia nada que entusiasmasse tanto o
povo como o retorno de seus exércitos de uma campanha bem-sucedida.
De acordo com o costume, o imperador saiu ao encontro do general e o abraçou.
Como a noite avançava, e o sol já afundara no Mediterrâneo azul, o imperador ordenou que o exército acampasse fora dos muros, onde pernoitaria, e na manhã seguinte entraria triunfal* mente na cidade. Plácido e sua família acompanharam o imperador ao Palatino. e foram entretidos com um suntuoso banquete. Ele deu ao imperador o relato de sua campanha, e falou até tarde da noite sobre suas batalhas, suas conquistas, a bravura de seus dois filhos, e a descoberta extraordinária de sua família.

Sonoro, agudo, e alegre foi o toque da trombeta que despertou o exército
sonolento na manhã seguinte. A taça da alegria para aquelas pobres criaturas foi
cheia até a borda. Eles não conheciam maior recompensa pelos anos de dureza e
provações, e pelas cicatrizes e ferimentos que os incapacitavam para a vida, que
os gritos de uma multidão bárbara e brutal, que os aclamava ao longo da estrada
do triunfo.
Quando entraram pelos portões, cada um recebeu uma coroa de louro, cujo frescor e beleza contrastavam com as feições queimadas de sol e os trajes esfarrapados. À volta do pescoço, e junto a si, levavam uma profusão de bugigangas vistosas, retiradas do inimigo vencido, para oferecer às esposas e aos filhos. Havia carroças puxadas por bois, tão lotadas de espólios, que faziam ranger o pavimento da Via Ápia; armaduras, ornamentos de ouro e cobre,
animais selvagens em gaiolas, e tudo o que pudesse mostrar os usos e costumes
dos povos conquistados.
O general seguia na retaguarda de seu exército, com a esposa e os dois filhos, numa agem dourada, puxada por quatro cavalos brancos. Não se via na mansa fisionomia de plácido nenhum orgulho, animação, ou alegria embriagada, comum nos conquistadores pagãos Toda aquela demonstração de regozijo e suntuosidade era para ele e sua família cristã a pompa funeral que os conduzia ao túmulo. O rei que, em seu leito de morte, ostentava a coroa e o manto real para enfrentar a morte como um monarca, era um retrato de Plácido levado em triunfo ao martírio - uma narrativa da vacuidade e instabilidade da grandeza humana, geralmente contada nas vicissitudes da história! Ele estava silencioso e sereno; nem mesmo o aplauso ensurdecedor da multidão de espectadores ociosos, que fazia o seu nome ressoar através dos palácios e tumbas que ladeavam as ruas desde o portão Capena ao Fórum, o levava a olhar para eles com um sorriso de aprovação jovial.

Plácido estava bem consciente de que, em alguns instantes, a sua fé em Cristo seria declarada, pois ele não poderia sacrificar aos deuses.
Enquanto a procissão avançava, um murmúrio percorria a turba. Perguntavam um ao outro onde estariam as vítimas. Cadê os chefes cativos? Onde estariam os escravos que geralmente vinham arrastados pela carruagem do conquistador? Onde as matronas e as filhas lastimosas da raça vencida, que juntavam à música do triunfo o seu lamento lutuoso?
Chegando ao Fórum, a procissão parou, como de costume, e os guardas e
executores da prisão Mamertine procuraram em vão por suas vítimas; era a
primeira vez nos anais do triunfo que os seus machados não seriam mergulhados
no sangue de heróis, cujo único crime fora lutar bravamente por seus lares e sua
pátria. Eles desconheciam a sublime moralidade capaz de perdoar o inimigo.
Plácido perdoou-os no instante em que os vencera, e em vez de arrastar vítimas
indefesas, tornando-as de sua pátria e famílias para serem imoladas aos
demônios de Roma, deixou seu nome no rastro de sua marcha, em bênção e amor.
Agora, porém, a procissão chegara à entrada do templo de Júpiter. Os sacerdotes aguardavam em seus mantos, e atados ao altar, viam-se os bois brancos, com os chifres dourados e guirlandas de flores na cabeça. Imensas achas ardiam no centro do templo para consumir as vítimas, e o incenso aromático era queimado em vasos de ouro. Plácido e sua família desceram da carruagem, e puseram-se a um lado.

Recusavam entrar: não iam sacrificar.
Se um terremoto houvesse abalado o templo até as suas fundações, ou um eclipse repentino escurecido o sol. o choque não teria sido maior que o experimentado naquele momento pelos milhares ali reunidos.

A notícia correu a multidão como fogo em rastilho de pólvora. Um murmúrio profundo e pesado, como uma vaga rompendo os seus limites, subiu da multidão que enchia o Fórum. Indignação e fúria foram as paixões que dominaram a plebe. O demônio do paganismo reinava em seus corações; piedade, justiça e liberdade eram virtudes desconhecidas. Os gritos e aplausos com que haviam aclamado Plácido o conquistador, a glória do Império, e o amado do deus marcial, tornaram-se em vaias, com gemidos e assovio.

Dos templos dourados do Capitólio soavam os gritos de "Morte aos cristãos!" "Fora com os cristãos!" .
O nobre general e sua família foram trazidos perante o imperador. Adriano
estaria alegre por Plácido haver sido trazido diante dele como criminoso? Sem
dúvida, via com olhos ciumentos a glória, a popularidade, a reconhecida
superioridade em destreza e realizações, e o triunfo real de alguém que, poucos
meses antes, era seu igual como comandante do exército, enquanto o seu próprio
triunfo não passara de um arremedo - o galardão emprestado de um herói
falecido, cujo panegírico ele pronunciara relutantemente, em cima da carruagem
do triunfo.
Além do mais, fraco de espírito e servil, ele deve ter regozijado com a oportunidade de satisfazer o gosto da turba cruel e brutal, acostumada a ver toda autoridade como usurpação e opressão, c que odiava o cristianismo como uma virulência satânica. Do mesmo modo que Trajano, ele resolveu provar sua lealdade aos deuses com a execução pública do maior homem do Império. Ele recebeu o velho chefe no templo de Apolo e, num discurso preparado, fingiu o que nunca sentiu: compaixão por sua insensatez. Quando inquirido pelo arrogante Adriano por que não sacrificaria aos deuses. Plácido respondeu brava e intrepidamente:

— Sou um cristão, e adoro unicamente ao Deus verdadeiro.
— De onde vem esta obsessão? — indagou logo o imperador. - Por que perder toda a glória do triunfo e expor à desonra a tua cabeça grisalha? Não sabes que tenho poder para mandar-te a uma morte miserável?
Plácido replicou meigamente: — Meu corpo está em teu poder, mas a minha alma pertence Aquele que a criou. Nunca hei de esquecer a misericórdia que Ele me demonstrou ao chamar-me ao seu conhecimento, e regozijo-me em ser capaz de sofrer por Ele. Tu podes mandar-me conduzir tuas legiões contra os inimigos do Império, mas jamais oferecerei sacrifício a qualquer outro deus que não o grande, poderoso, e único Deus que criou todas as coisas, estendeu os céus em sua glória, adornou a terra com suas belezas, e criou o homem para servi-lo.
Somente Ele é digno de sacrifício; todos os outros deuses são demônios que
enganam o homem.
Assim responderam também sua esposa e os dois filhos. Eles gracejaram com o imperador por adorar peças inconscientes de mármore e madeira. Adriano tentou em vão promessas e ameaças, e todos os argumentos tolos usados em defesa do paganismo. A fiel família mostrou-se inflexível. A argumentação de Plácido era simples, porém sincera e poderosa; e a derrota palpável de Adriano, ao tentar arrazoar com alguém dotado da eloqüência prometida aos fiéis arrastados perante os tribunais terrenos, aumentou ainda mais o seu orgulho e crueldade, bem como o seu desejo de vingança.
O Coliseu ficava a poucos passos dali; os jogos estavam em andamento; os
criminosos e escravos do Império eram as vítimas diárias de seus divertimentos.
A condenação de Plácido seria um golpe de astúcia para aumentar a prosperidade
de seu reinado; era a completa - gratificação aos sentimentos de inveja e vingança
que o demônio atiçara-lhe no coração. Ele ordenou que o general cristão e a sua
família fossem expostos às bestas feras no anfiteatro.

É provável que Plácido e sua família tenham passado aquela noite na escura e fétida prisão Marnietina. Era uma cela recortada na rocha sólida, ao pé do Capitólio, e consistia de duas câmaras, uma sobre a outra, onde só era possível entrar pelas aberturas no teto. A mais baixa e lúgubre dessas câmaras era destinada aos condenados à morte. Essas prisões existem a quase três mil anos, e juntamente com as cloacas. ou os grandes canos de esgoto da cidade, são os monumentos mais perfeitos da época augusta.
Na manhã seguinte, 20 de setembro do ano 120 de nossa era, o povo acorreu às dezenas de milhares ao Coliseu. Eles sabiam o que aconteceria; tinham ouvido sobre a condenação pelo imperador. A surpresa e a indignação diante da descoberta de que o general pertencia à odiada seita dos cristãos expressavam-se no franzir de suas frontes anuviadas.
Não seria num anfiteatro manchado com o sangue de feras e gladiadores, e repleto de gente excitada e insensível, que se ouviria a voz da piedade e da razão.
O clamor impaciente da turba denunciava os cristãos como inimigos dos deuses e
dos homens, e a condenação pública do general cristão já ressoara pelas
bancadas do Coliseu. A chegada do imperador foi anunciada; o zumbido das
conversas silenciou; todos os olhos voltaram-se à entrada que dava para o
Esquilino, especialmente reservada ao séquito real. Tão logo o imperador
adentrou o anfiteatro, todos se levantaram; os lictores abaixaram a cabeça, e os
senadores e as vestais curvaram-se profundamente. Os gritos de "grande", "imortal", "divino", ecoaram de todos os lados. A multidão de espectadores nada
mais era que uma assembléia de escravos infames, que tremia ao aceno de seus
governantes.

Embora os freqüentadores do Coliseu geralmente odiassem o imperador como um opressor e tirano, no frenesi do medo gritavam, com língua mentirosa, que somente ele era grande e poderoso. Ele carregava um cetro de marfim encimado por uma águia de ouro, e um escravo o seguia, segurando acima de sua cabeça uma coroa de ouro maciço e pedras preciosas. Tão logo o imperador se sentou, o toque agudo de uma trombeta convocou ao silêncio e ao
começo dos jogos.

Após a procissão dos infelizes que tomariam parte no programa de esportes cruéis daquele dia, e a luta simulada dos gladiadores, era costume iniciarem-se os esportes de destreza e habilidade; nesse dia, porém, a ordem foi mudada. O populacho clamava pela condenação dos cristãos, e o imperador ordenou que Plácido e sua família fossem expostos às feras.
Eles foram conduzidos à arena acorrentados. Estavam silenciosos e absortos em oração. O dos jogos pediu-lhes uma vez mais que sacrificassem aos
deuses. Eles recusaram.

Os Lentas receberam ordens de soltar algumas bestas selvagens para os devorar. Um silêncio mortal reinou no ambiente. Todos foram tocados com a firmeza da família; nenhum grito de pavor, nenhuma tremedeira, nenhuma súplica por misericórdia, nenhum coração partido ou lida frenética; tudo era calma e tranqüilidade.

Os quatro esperaram de joelhos dobrados, e com majestosa resignação, a sentença tenebrosa. As portas de ferro dos cárceres subterrâneos rangeram em seus gonzos; dois leões e quatro ursos saltaram na arena.
Os animais não tocaram os mártires; puseram-se a cabriolar à sua volta.
Um dos leões tentou enfiar a cabeça sob o pé de Plácido. Ele o permitiu. E
aconteceu então a coisa mais bela e emocionante jamais vista no Coliseu: o rei
das selvas pôs-se voluntariamente sob o pé do ancião desarmado, e agachou-se
como se sentisse medo e reverência.
— Atiçai os animais! — gritou aos guardas o enfurecido imperador.
— Atiçai-os! Fazei-os devorá-los! — ouviu-se em cada fileira, desde os senadores e as vestais, às bancadas da plebe enlouquecida.
Não obstante, os animais voltaram aos seus guardadores, que os tiraram da arena. Outros bichos foram soltos, mas serviram apenas para aumentar a cena do triunfo: respeitosamente lamberam os pés de suas supostas vítimas.
Deus, que usara um animal para trazer Plácido à luz da fé, e posteriormente usara outros como instrumentos de suas provações e tristezas, agora fazia-os expressar o seu amor e proteção aos seus servos.
A indignação e a vergonha do imperador pagão elevaram-se ao clímax; a sua raiva impotente e a sua crueldade natural explodiram, e para gratificar sua paixão brutal, ordenou que os mártires fossem postos no touro de bronze, e consumidos por um fogo lento. 0 touro de bronze era um terrível instrumento de

tortura empregado na perseguição aos cristãos.

Diversas pessoas podiam ser postas ao mesmo tempo em seu ventre oco, e quando o fogo era posto sob ele, tornava-se um forno, e... não é difícil imaginar a excruciante tortura que o fogo lento devia causar às vítimas vivas.

Sabemos, por diversas fontes, que esse formidável instrumento de suplício foi usado tanto antes, quanto bem depois do tempo de Adriano, e que muitos fiéis foram nele martirizados.
Desse modo. Plácido e sua família receberam sua coroa. O Deus Todopoderoso
desejou mostrar, através de um grande milagre, que era pela sua vontade, e não pelas ordens do imperador, que os seus servos seriam despojados da vida.

Três dias depois, seus corpos foram retirados de lá, na presença do imperador. Não havia neles qualquer traço de fogo; exalavam um agradável odor, e pareciam entregues a um doce sono. Os corpos foram deixados sobre o solo por vários dias, e toda a cidade acorreu para ver o milagre.
Como o nosso Deus nada faz em vão, muitos foram convertidos mediante este milagre, e tornaram-se cristãos fervorosos. Os corpos dos mártires foram roubados por cristãos, e posteriormente enterrados juntamente com o touro de bronze no local onde se deu o martírio.

Fonte: Martires do Coliseu

Comentários

Unknown disse…
Amo essa história!

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CONECTADOS COM A PALAVRA

Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração. Hb 4.12 Segundo o  Ibope Media , somos 94,2 milhões de internautas tupiniquins (dezembro de 2012) [1] , sendo o Brasil o 5º país mais conectado [2] . O percentual de brasileiros conectados à internet aumentou de 27% para 48%, entre 2007 e 2011 [3] . O principal local de acesso é a lan house (31%), seguido da própria casa (27%) e da casa de parente de amigos, com 25% (abril/2010). O Brasil é o 5º país com o maior número de conexões à Internet [4] . 50,7 milhões de usuários acessam regularmente a Internet [5] . 38% das pessoas acessam à web diariamente; 10% de quatro a seis vezes por semana; 21% de duas a três vezes por semana; 18% uma vez por semana. Somando,  87% dos internautas brasileiros entram na internet semanalmente [6] . Tempo médio de navegação Em julho ...

A Parábola do Rio - Romanos 1.21-32

Havia outrora cinco irmãos, que moravam com o pai num castelo, no alto de uma montanha. O mais velho era um filho obediente. Seus quatro irmãos, todavia, eram rebeldes. O pai tinha-lhes grande cuidado por causa do rio; já lhes havia implorado que ficassem distante da margem, para que não fossem varridos pelo refluxo da maré. Mas eles não ligavam; a atração do rio era-lhes demasiadamente forte. A cada dia, os quatro irmãos rebeldes arrisca­vam-se cada vez mais perto do rio, até que, uma vez, um deles atreveu-se a tocar a água. — Segurem a minha mão — gritou ele. — As­sim não cairei. E seus irmãos o fizeram. Quando ele porém tocou a água, o repuxo arrastou-o com os outros três para dentro da correnteza, rolando-os rio abaixo. Foram despencando de rocha em rocha, girando no leito do rio. Arrastados pelas vagas, eles se foram. Seus gritos de socorro perde­ram-se na fúria do rio. Embora se debatessem tentando recuperar a estabilidade, foram impotentes contra a força da correnteza. Depois de...

A Igreja Não é uma Democracia: A Sabedoria de um Governo de Discipulado

  A igreja não é uma instituição secular qualquer. Sua definição vem da própria Escritura: ela é o corpo de Cristo (1 Co 12:27). Isso significa que seus valores, visão, governo e liderança derivam da palavra de Jesus, revelada nos evangelhos e nos ensinos dos apóstolos — e não dos ventos da cultura, tampouco das boas ideias. Quem vive de boas ideias é o marketing. A formação da liderança e do governo da igreja não é fruto da tomada de poder, resultando numa ditadura impositiva; mas também não é resultado de uma representatividade democrática, onde o voto de um neófito tem o mesmo peso de um presbítero experiente. Basta olhar para o catolicismo e seu conclave: não há democracia ali há mais de 1500 anos. É nítida a confiança dos fiéis na escolha do seu pontífice por líderes comprometidos com sua história, dogma e fundamentos. Uma frase repetidamente usada por eles no recente conclave foi: “O Espírito Santo escolherá o novo papa”. Isso é fé. Sem propagandas, sem interferências de pres...

Nascer do Sol

E, passado o sábado, Maria Madalena, e Maria, mãe de Tiago, e Salomé, compraram aromas para irem ungi-lo. Marcos 16:1 Como se sentiria se depois de anos de contribuição num fundo de investimento de aposentadoria privado, descobrisse que não conseguiria receber o que lhe é de direito? você chegar no gerente e diz que quer dar entrada no processo de recebimento de beneficio, afinal voce trabalhou e contribuiu incançavelmente durante anos afinco para poder ter um pouco mais de tranquilidade e qualidade quando idoso. O gerente olha pra voce e diz que voce infelizmente não poderá receber porque o banco literalmente quebrou. E agora o que fazer voce não tem mais força para trabalhar (tem muita vontade), como vai viver? todos os plano foram pro ralo, o sonho de ir passar algumas semanas em Fernando de Noronha tranformou-se em um pesadelo (afinal era uma bela aposentadoria). O que fazer quando planejamos dias ensolarados e belos e acabamos em noites escuras e frias? O que faze...

OS ATAQUES CONTRA A FAMÍLIA, E NOSSO VERDADEIRO FROINT DE BATALHA

Vemos estarrecidos os acontecimentos minuto após minuto de um mundo desesperado por soluções urgentes para uma sociedade cada vez mais sem rumo. Parece que as pessoas desaprenderam viver. Os valores sólidos tornaram-se líquidos, o preço é alto e a conta chegou. A corrupção é generalizada. É na família, no parlamento, na igreja, na escola, nas instituições de poder, enfim... ah, até na arte. Quem diria hein! Como cristão, não me surpreendo nenhum pouco com que vejo sendo produzido em uma sociedade que, finge que Deus não existe. Fico sim, chocado por estar vivendo tempos que foram profetizados, e por saber que só começamos a descer a ladeira. Vai ficar muito pior. Mas o que me espanta de verdade, é ver uma igreja que luta com as armas erradas, com o inimigo errado e da forma errada. Quero dar um exemplo: Outro dia recebi um vídeo que o título era: “Tire seu filho da escola! ” O vídeo tratava-se do que estamos vendo, a tentativa e até certo ponto já acontecendo, das várias do...